Impacto na Habitação
Análise a cargo de André Ricardo Alves dos Santos
A habitação é um direito dos cidadãos, consagrado na Constituição da República Portuguesa: "Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar." (CRP artigo 65º).
Sendo que um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU é garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada e a preço acessível, o Orçamento do Estado para 2024 adota várias medidas com o intuito de tornar este cenário possível.
Para analisar algumas das medidas propostas em sede do Orçamento do Estado para 2024 no âmbito da habitação é importante primeiro analisar o contexto sociodemográfico e económico de Portugal.
População
A população residente em Portugal, em 2022, foi estimada em 10 467 366 pessoas, com
um aumento de 46 249 habitantes relativamente ao ano anterior. Este acréscimo
populacional resultou do saldo migratório que foi positivo, pelo sexto ano consecutivo,
adicionando mais 86 889 habitantes à população residente em Portugal. A taxa de
crescimento efetivo da população foi positiva, de 0,44%, devido ao aumento da taxa de
crescimento migratório em 0,83%, valor mais alto observado desde 2017, enquanto a taxa de
crescimento natural manteve a tendência negativa dos últimos anos, atingindo os -0,39%.
Parque habitacional
Em 2021, o parque habitacional português totalizava 3.573.416 edifícios, dos quais 49.8% foram construídos após 1980, mas apenas 3,1% do total dos edifícios foram construídos entre 2011 e 2021.
Os resultados dos Censos 2021 revelam um abrandamento no crescimento do parque habitacional, os edifícios cresceram apenas 0,8% e os alojamentos familiares clássicos 1.9% em relação a 2011, valores significativamente inferiores aos observados em décadas anteriores.
Em 2021, dos 5.970.677 alojamentos familiares clássicos que constituíam o parque habitacional, 69,4% encontravam-se ocupados como residência habitual, enquanto as residências secundárias representavam 18,5% e os alojamentos vagos 12,1%.
Dos alojamentos ocupados como residência habitual, 70% estavam ocupados pelo
proprietário e os restantes 30% encontravam-se em arrendamento ou noutras situações.
Analisando mais detalhadamente os alojamentos familiares em arrendamento ou noutras
situações, observamos que 88,8% eram propriedade de particulares ou de empresas privadas
e de ascendentes ou descendentes, 2,6% pertenciam à Administração Central, 7.3% às
Autarquias locais e 1.2% a Cooperativas de habitação.
Preço das rendas e casas
O valor mediano das rendas por m2 de novos contratos de arrendamento de alojamentos familiares sofreu um aumento de 33,62%, desde o 4º trimestre de 2020 até ao 4º trimestre de 2023, enquanto o valor mediano das vendas por m2 de alojamentos familiares evoluiu, de forma similar, aumentando 38,13%, desde o 4º trimestre de 2020 até ao 4º trimestre de 2023, dados do INE.
Analisando a taxa de juro de novos empréstimos à
habitação, observamos que, devido à inflação sentida no pós-COVID, esta aumentou de
0,77%, em janeiro de 2021, para 4,03%, em janeiro de 2023.
Analisando a tendência do custo de acesso à habitação em Portugal e comparando com
a média da União Europeia (UE) observa-se uma tendência de crescimento mais elevada em
Portugal que na média da UE. Entre 2015 e 2021, observa-se que o preço da habitação
aumentou 68.8% em Portugal enquanto a média da UE foi de 37,7%. Em termos de preços
das rendas, em Portugal, estes evoluíram positivamente 12,8%, enquanto a média da UE foi
de 8%, para o mesmo período.
Medidas a analisar
1) Fim dos ARI -"vistos Gold"
O visto Gold - oficialmente conhecido por Autorização de Residência para Atividade de Investimento (ARI) - "permite que cidadãos nacionais de Estados Terceiros possam obter uma autorização de residência temporária para atividade de investimento com a dispensa de visto de residência para entrar em território nacional, podendo circular pelo espaço Schengen, sem necessidade de visto" (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) . A sua obtenção pode ser conseguida através da captação de investimento (como compra de imóveis de valores elevados), da transferência de capitais de valor avultado, ou da criação de emprego de, pelo menos, 10 postos de trabalho.
Desde a sua introdução em outubro de 2012 até abril de 2022 foram atribuídos 10.636 ARI e realizado um investimento de 6.284.311.472,71€ em Portugal. Dos ARI atribuídos, durante este período, 9.872 foram atribuídos por via da aquisição de bens imóveis, resultando num investimento total de 5.652.613.016,24€, 744 ARI foram atribuídos por via de transferência de capitais, totalizando um investimento de 631.698.456,48€ e apenas 20 ARI foram atribuídos por via da criação de postos de trabalho.
A eliminação dos ARI é uma medida que tem o consenso dos principais partidos, os ARI foram introduzidos num contexto de crise como uma medida expansionista com a intenção de captar investimento estrangeiro e reavivar o mercado imobiliário.
Apesar de ter um impacto negativo residual nas receitas diretas do Estado, terá um significativo impacto na economia do país e no mercado da habitação, já que mais de 90% dos ARI foram atribuídos por via de aquisição de bens imóveis.
2) Isenção de IMT e Imposto de Selo
O novo Governo definiu no seu programa como medida a implementar a isenção do pagamento do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, vulgarmente conhecido por IMT, e do Imposto de Selo (IS) para jovens, até aos 35 anos de idade, na compra da primeira habitação até ao valor de 316.000,00€. Esta medida tem o objetivo de facilitar a compra da primeira habitação por parte dos jovens, tornando o custo da mesma mais baixo em contrapartida da perda de receita do Estado.
Para calcular o impacto desta medida nos cofres públicos realizei uma estimativa com os dados que existem, uma vez que alguns dados são limitados e realizando a abordagem que me parece mais próxima da realidade.
Segundo dados de 2023 do Banco de Portugal, o montante total fornecido de crédito à habitação própria permanente foi de 10.000.000.000,00€ e 60,9% deste valor foi fornecido a pessoas com idade até aos 40 anos (com a falta de maior detalhe sobre os valores até aos 35 anos, assumo o limite da medida como os 40 anos). Assim, temos um montante que poderá ser abrangido pelo benefício do governo de 6.090.000.000,00€.
IMT
Como a taxa de IMT é progressiva para o crédito à habitação própria permanente, é necessário primeiro separar em grupos os valores do crédito e corresponder os respetivos montantes do total de crédito concedido, segundo os dados do Banco de Portugal e analisar as correspondentes taxas média e marginal do IMT.
Para calcular o impacto máximo que esta medida produzirá e devido à falta de uma lista exata de cada crédito concedido, foi utilizada a abordagem de calcular o valor do IMT para o valor do crédito máximo de cada grupo e a taxa média resultante desse valor de IMT pelo valor máximo do crédito.
- Para créditos de 0,01€ a 100.000,00€, que representam 41% dos empréstimos concedidos, a taxa de IMT é 0% e por isso os créditos nestes valores não são abrangidos por esta medida.
- Para créditos de 100.000,00€ a 150.000,00€ o imposto de IMT, calculado para 150.000,00€, é de 1.279,30€, com uma taxa média do IMT para este valor de 0,85%.
- Para créditos de 150.000,00€ a 200.000,00€ o imposto de IMT, calculado para 200.00,00€, é de 3.977,53€, com uma taxa média do IMT para este valor de 1,99%.
- Para créditos de 200.000,00€ a 250.000,00€ o imposto de IMT, calculado para 250.000,00€, é de 7.477,53€, com uma taxa média do IMT para este valor de 2,99%.
- Para créditos de 250.000,00€ a 300.000,00€ o imposto de IMT, calculado para 300.00,00€, é de 10.977,53€, com uma taxa média do IMT para este valor de 3,66%.
- Esta medida é apenas válida até ao valor de 316.000,00€. Como não existe uma lista exata e apenas existe informação por grupos de valores dos créditos, para esta estimativa assumo o limite da medida nos 300.000,00€. Neste contexto, os empréstimos concedidos superiores aos 300.000,00€, que representam apenas 4% do total do montante concedido, não são abrangidos no cálculo do custo da isenção para o Estado.
Com os dados obtidos anteriormente calculei o montante total de crédito concedido em cada grupo pela taxa média calculada de IMT correspondente a cada grupo e, por fim, somei o valor obtido de todos os grupos.
Concluindo esta análise, a isenção do IMT terá um impacto negativo estimado em termos de perda de receita fiscal de 52.055.413,60€.
IS
Em relação ao impacto da isenção do Imposto de Selo (IS) é mais simples de estimar uma vez que a taxa do IS é fixa, e tem um valor de 0,8% do montante concedido. Somando os grupos abrangidos pela medida, ou seja, todos os créditos à habitação própria permanente dos 0,01€ aos 300.000,00€ obtemos um montante de crédito total de 5.846.400.000,00€. Calculando este montante de crédito total pela taxa do IS (5.846.400 000,00 €*0,008) obtemos que a isenção do IS terá um efeito negativo nas receitas do Orçamento do Estado para 2024 de 46.771.200,00€.
Estas duas medidas de carácter expansionista provocam uma perda estimada de receita no valor de 98.826.613,60€ no Orçamento do Estado para 2024.
A isenção do IMT para habitação própria e permanente foi uma medida defendida pelos principais partidos durante as legislativas, sendo consensual que era necessária para facilitar o acesso à habitação a preços acessíveis. Atendendo ao expectável excedente orçamental de 2023 seria interessante o governo ir mais longe ao não limitar a idade que usufrui da isenção e abolir ou reduzir a taxa de Imposto Municipal sobre Imóveis, mesmo que temporariamente, na habitação própria e permanente, tal como foi proposto por outros partidos durante as eleições legislativas.